quarta-feira, setembro 16, 2009

Minhas leituras - Excertos III


A virtude de Cristo que o liberalismo religioso tem exaltado acima de todas as outras é o amor. O discernimento desta excelência nele não constitui, seguramente, nenhuma aberração da parte do pensamento liberal, levando-se em conta tudo o que se possa dizer sobre a escassez de referências ao amor nos evangelhos sinóticos. O resto do Novo Testamento, e o testemunho dos cristãos em todas as épocas confirmam que o amor é uma das grandes virtudes de Jesus Cristo, e que o que ele requer dos seus discípulos ou oferece a eles como possível é o amor. Todavia, quando examinamos o Novo Testamento, e estudamos nele o retrato de Jesus, começamos a duvidar do valor descritivo de frases como "o absolutismo e perfeccionismo do amor ético de Jesus" (Harnack).

Em lugar nenhum Jesus exige amor pelo amor. (...) A virtude do amor no caráter e exigência de Jesus é a virtude do amor de Deus e do próximo em Deus, não a virtude do amor de amor. (...) Para Jesus não existe nenhum ser final digno de amor e nenhum outro objeto último de devoção a não ser Deus. Ele é o Pai; nenhum bem existe a não ser Deus; a ele somente se deve render graças; somente o seu reino deve ser buscado. Daí que o amor de Deus no caráter e ensino de Jesus não apenas seja compatível com a ira, mas possa ser mesmo o seu motivo, como quando ele vê a casa do Pai transformada em covil de salteadores ou os pequeninos do Pai ultrajados. Daí ser correto e possível salientar a significação desta virtude em Jesus, e ao mesmo tempo reconhecer que de acordo com os evangelhos sinóticos ele deu ênfase, na conduta e no ensino, às virtudes da fé em Deus e humildade diante dele, muito mais do que ao amor.

Se se quer entender a natureza desta virtude em Jesus, alguma atenção tem de ser dada à sua teologia. A tendência de se descrever Jesus totalmente em termos de amor está intimamente ligada à disposição de se identificar Deus com amor.

Paternidade é considerada como sendo quase o único atributo de Deus e, assim, quando Deus é amado, é o princípio de paternidade que é realmente amado (Harnack). (...) Ele é a benevolência que a todos inclui (Niebuhr). Naturalmente, isto não representa a teologia de Jesus. Muito embora Deus seja amor, para ele o amor não é Deus. O Deus que Cristo ama é o "Senhor do céu e da terra"; ele é o Deus de Abraão, Isac e Jacó; ele é o poder que causa a chuva e o sol, sem cuja vontade e conhecimento não morre um único pardal, nenhuma cidade é destruída, e nem ele mesmo é crucificado. (...) Contra esta interpretação da natureza única da virtude do amor em Jesus Cristo como baseada na integridade de sua devoção a Deus, poderá ser levantada a objeção de que ele pratica e ensina um amor duplo - para com o próximo e para com Deus - de modo que a sua ética terá dois focos: "Deus, o Pai e o valor infinito da alma humana" (Harnack). Tais afirmações esquecem que o duplo mandamento, quer tenha sido originalmente estabelecido por Jesus ou simplesmente confirmado por ele, de modo nenhum coloca Deus e o próximo no mesmo nível, como se íntegra devoção fosse devida a ambos. É Deus somente que é para ser amado com o coração, alma, mente e força. O próximo é colocado no mesmo nível de valor que o eu ocupa. Além disto, a idéia de atribuir valor "intrínseco" ou "infinito" à alma humana parece completamente estranha a Jesus. Ele não fala de valor, à parte de Deus. O valor do homem, como o valor do pardal e da flor, é o seu valor para Deus; a medida do verdadeiro gozo, em termos de valor, é o gozo do céu. Porque o valor é valor em relação a Deus, Jesus vê o sagrado em toda a criação, e não apenas na humanidade, muito embora os seus discípulos encontrem conforto especial no fato de serem de mais valor para Deus do que os pássaros, que também são valiosos. A virtude do amor ao próximo nos ensinos e conduta de Jesus nunca poderá ser pertinentemente descrita, se for tomada à parte do amor a Deus, o qual é de valor fundamental. Cristo ama o seu próximo não como a si mesmo, porém como Deus o ama. Daí o quarto evangelho, percebendo que o postulado judeu "ama o teu próximo como a ti mesmo" não se coadunava adequadamente nem com as ações de Jesus nem com os seus preceitos, haver modificado o mandamento para "amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei". Além disto, ficou bem claro para os discípulos que o amor de Jesus pelos homens não era apenas uma ilustração da benevolência universal, mas um ato decisivo do Agape divino. Pois temos de enfrentar o reconhecimento de que o que os primeiros cristãos viram em Jesus Cristo (e é o que devemos aceitar se atentarmos para ele e não para o que nos diz a nossa imaginação a respeito dele) não foi uma pessoa caracterizada pela benignidade universal, amando a Deus e ao homem. Seu amor para com Deus e seu amor para com o próximo são duas virtudes distintas que não têm nenhuma qualidade em comum, mas apenas uma fonte comum. Amor a Deus é a adoração do único bem verdadeiro; é a gratidão ao doador de todos os dons; é regozijo pela santidade; é "assentimento ao Ser". Mas o amor ao homem é compassivo e não adorador; é doador e perdoador sem ser gratidão, sofrendo nos vícios e profanações dessas atitudes e por elas, não as aceitando como são, mas chamando-as ao arrependimento. O amor a Deus é o Eros não possessivo; o amor ao homem, puro Agape; o amor a Deus é paixão; o amor ao homem, compaixão. Há uma dualidade aqui, mas não a de um mesmo interesse em relação a dois grandes valores, Deus e o homem. Trata-se, antes, da dualidade do Filho do Homem e Filho de Deus, que ama a Deus como o homem deve amá-lo, e ama ao homem como somente Deus pode amá-lo, com poderosa compaixão por aqueles que tropeçam. Parece, então, não haver maneira mais adequada para se descrever a virtude do amor em Jesus, senão dizendo que o seu amor foi o amor do Filho de Deus.


RICHARD NIEBUHR, CRISTO E CULTURA


Nenhum comentário: