A virtude de Cristo que o liberalismo religioso tem exaltado acima de todas as outras é o amor. O discernimento desta excelência nele não constitui, seguramente, nenhuma aberração da parte do pensamento liberal, levando-se em conta tudo o que se possa dizer sobre a escassez de referências ao amor nos evangelhos sinóticos. O resto do Novo Testamento, e o testemunho dos cristãos em todas as épocas confirmam que o amor é uma das grandes virtudes de Jesus Cristo, e que o que ele requer dos seus discípulos ou oferece a eles como possível é o amor. Todavia, quando examinamos o Novo Testamento, e estudamos nele o retrato de Jesus, começamos a duvidar do valor descritivo de frases como "o absolutismo e perfeccionismo do amor ético de Jesus" (Harnack).
Em lugar nenhum Jesus exige amor pelo amor. (...) A virtude do amor no caráter e exigência de Jesus é a virtude do amor de Deus e do próximo em Deus, não a virtude do amor de amor. (...) Para Jesus não existe nenhum ser final digno de amor e nenhum outro objeto último de devoção a não ser Deus. Ele é o Pai; nenhum bem existe a não ser Deus; a ele somente se deve render graças; somente o seu reino deve ser buscado. Daí que o amor de Deus no caráter e ensino de Jesus não apenas seja compatível com a ira, mas possa ser mesmo o seu motivo, como quando ele vê a casa do Pai transformada em covil de salteadores ou os pequeninos do Pai ultrajados. Daí ser correto e possível salientar a significação desta virtude em Jesus, e ao mesmo tempo reconhecer que de acordo com os evangelhos sinóticos ele deu ênfase, na conduta e no ensino, às virtudes da fé em Deus e humildade diante dele, muito mais do que ao amor.
Se se quer entender a natureza desta virtude em Jesus, alguma atenção tem de ser dada à sua teologia.A tendência de se descrever Jesus totalmente em termos de amor está intimamente ligada à disposição de se identificar Deus com amor.
Paternidade é considerada como sendo quase o único atributo de Deus e, assim, quando Deus é amado, é o princípio de paternidade que é realmente amado (Harnack). (...) Ele é a benevolência que a todos inclui (Niebuhr). Naturalmente, isto não representa a teologia de Jesus.Muito embora Deus seja amor, para ele o amor não é Deus.O Deus que Cristo ama é o "Senhor do céu e da terra"; ele é o Deus de Abraão, Isac e Jacó; ele é o poder que causa a chuva e o sol, sem cuja vontade e conhecimento não morre um único pardal, nenhuma cidade é destruída, e nem ele mesmo é crucificado.(...) Contra esta interpretação da natureza única da virtude do amor em Jesus Cristo como baseada na integridade de sua devoção a Deus, poderá ser levantada a objeção de que ele pratica e ensina um amor duplo - para com o próximo e para com Deus - de modo que a sua ética terá dois focos: "Deus, o Pai e o valor infinito da alma humana" (Harnack). Tais afirmações esquecem que o duplo mandamento, quer tenha sido originalmente estabelecido por Jesus ou simplesmente confirmado por ele, de modo nenhum coloca Deus e o próximo no mesmo nível, como se íntegra devoção fosse devida a ambos. É Deus somente que é para ser amado com o coração, alma, mente e força. O próximo é colocado no mesmo nível de valor que o eu ocupa. Além disto, a idéia de atribuir valor "intrínseco" ou "infinito" à alma humana parece completamente estranha a Jesus. Ele não fala de valor, à parte de Deus. O valor do homem, como o valor do pardal e da flor, é o seu valor para Deus; a medida do verdadeiro gozo, em termos de valor, é o gozo do céu. Porque o valor é valor em relação a Deus, Jesus vê o sagrado em toda a criação, e não apenas na humanidade, muito embora os seus discípulos encontrem conforto especial no fato de serem de mais valor para Deus do que os pássaros, que também são valiosos.A virtude do amor ao próximo nos ensinos e conduta de Jesus nunca poderá ser pertinentemente descrita, se for tomada à parte do amor a Deus, o qual é de valor fundamental. Cristo ama o seu próximo não como a si mesmo, porém como Deus o ama. Daí o quarto evangelho, percebendo que o postulado judeu "ama o teu próximo como a ti mesmo" não se coadunava adequadamente nem com as ações de Jesus nem com os seus preceitos, haver modificado o mandamento para "amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei".Além disto, ficou bem claro para os discípulos que o amor de Jesus pelos homens não era apenas uma ilustração da benevolência universal, mas um ato decisivo do Agape divino. Pois temos de enfrentar o reconhecimento de que o que os primeiros cristãos viram em Jesus Cristo (e é o que devemos aceitar se atentarmos para ele e não para o que nos diz a nossa imaginação a respeito dele) não foi uma pessoa caracterizada pela benignidade universal, amando a Deus e ao homem. Seu amor para com Deus e seu amor para com o próximo são duas virtudes distintas que não têm nenhuma qualidade em comum, mas apenas uma fonte comum. Amor a Deus é a adoração do único bem verdadeiro; é a gratidão ao doador de todos os dons; é regozijo pela santidade; é "assentimento ao Ser". Mas o amor ao homem é compassivo e não adorador; é doador e perdoador sem ser gratidão, sofrendo nos vícios e profanações dessas atitudes e por elas, não as aceitando como são, mas chamando-as ao arrependimento. O amor a Deus é o Eros não possessivo; o amor ao homem, puro Agape; o amor a Deus é paixão; o amor ao homem, compaixão. Há uma dualidade aqui, mas não a de um mesmo interesse em relação a dois grandes valores, Deus e o homem. Trata-se, antes, da dualidade do Filho do Homem e Filho de Deus, que ama a Deus como o homem deve amá-lo, e ama ao homem como somente Deus pode amá-lo, com poderosa compaixão por aqueles que tropeçam.Parece, então, não haver maneira mais adequada para se descrever a virtude do amor em Jesus, senão dizendo que o seu amor foi o amor do Filho de Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário