quinta-feira, novembro 26, 2009

Papo de Graça - C. S. Lewis e George MacDonald




Abaixo, uma conversa imaginária criada por Lewis em O grande abismo, entre ele e o Professor - George MacDonald, que é um dos responsáveis pelo seu encontro com a Alegria, e por aquilo que ele chama de ‘conversão da imaginação’.

O grande abismo (também traduzido como O grande divórcio) é um livro alegórico e deve ser encarado como tal. O subtítulo do livro evidencia seu tema: uma viagem das profundezas do inferno à superfície do céu. E é esse o cenário da conversa: a superfície do céu, onde os Fantasmas [perdidos] que querem, tem acesso.

OBS - As idéias do Lewis devem ser extraídas à luz de suas outras obras. A dica é: no livro O problema do sofrimento ele dedica capítulos inteiros sobre o céu e sobre o inferno.

Boa leitura!


***

“Meu nome é George”, respondeu. “George Mac Donald.”

“Ó!” exclamei. “Pode então dizer-me. Pelo menos não vai enganar-me.” Supondo então que tais expressões de confiança precisavam ser explicadas, tentei, tremendo, contar-lhe tudo o que seus escritos tinham feito por mim. Procurei falar sobre certa tarde gelada numa estação de trens quando comprei uma cópia de sua obra Phantastes (eu tinha na época cerca de dezesseis anos) que foi para mim o que a primeira visão de Beatriz foi para Dante: Este é o começo da Nova Vida. Passei a confessar quanto tempo essa Vida permanecera apenas na imaginação: como lentamente e com relutância viera a admitir que o seu cristianismo tinha uma ligação mais do que acidental com ela, como tentara duramente não ver que o verdadeiro nome da qualidade que o primeiro se defrontou comigo em seus livros era Santidade. Ele colocou a mão sobre a minha e me fez parar.

“Filho”, disse ele, “O seu amor — todo amor — tem um valor indizível para mim. Mas pode poupar-me um tempo preciso (e ele nessa hora pareceu realmente um escocês) se eu lhe disser que já tenho perfeito conhecimento desses detalhes biográficos. De fato, percebi que sua memória o trai em um ou dois pontos.”

“Oh!” disse eu, e fiquei calado.

“Você tinha começado”, falou meu Professor, “a tratar de algo mais proveitoso.”

“Senhor”, respondi, “tinha quase me esquecido, e não me preocupo com a resposta agora, embora esteja ainda curioso sobre uma coisa. Trata-se desses Fantasmas. Algum deles fica? Podem ficar? Existe realmente uma opção para eles? Como chegam aqui?”
“Você nunca ouviu falar do Refrigério? Um homem com as suas vantagens poderia tê-lo lido em Prudêncio, para não mencionar Jeremy Taylor.”

“O nome me soa familiar, senhor, mas acho que esqueci do seu significado.”

Significa que os condenados têm feriados — excursões, você compreende.”

“Excursões a este país?”

“Para aqueles que quiserem fazê-las. Naturalmente a maioria dessas tolas criaturas não quer. Preferem viajar de volta para a terra. Vão e enganam as parvas mulheres chamadas médiuns. Vão para lá e tentam apossar-se de alguma propriedade que antes lhes pertenceu, e é assim que surgem as casas mal assombradas. Ou vão espreitar os seus filhos. Os fantasmas literatos ficam rondando as bibliotecas públicas para ver se alguém lê os seus livros.”

“Mas se vierem aqui, podem realmente ficar?”

“Naturalmente. Você deve ter ouvido que o imperador Trajano fez isso.”

“Mas, não entendo. O juízo não é final? Existe mesmo um meio de sair do inferno e ir para o céu?”

“Isso depende da maneira como você usa as palavras. Se eles deixarem para trás aquela cidade cinza não terá sido o Inferno. Para quem quer que a deixe, ela é o Purgatório. E talvez seja melhor você não chamar este país de Céu. Não Céu Profundo, compreende?” (E aqui ele sorriu para mim.) “Pode chamá-lo de Vale da Sombra da Vida. Entretanto, para os que ficam aqui terá sido Céu desde o princípio. E pode chamar aquelas ruas tristes na cidade lá longe de Vale da Sombra da Morte: mas para os que ali permanecem terão sido inferno desde o começo.”

Suponho que viu que eu parecia confuso, pois continuou.

“Filho”, disse, “no seu estado atual você não pode compreender a eternidade: quando Anodos olhou através da porta do Eterno ele não levou de volta qualquer mensagem. Mas você pode obter uma semelhança dela se disser que tanto o bem como o mal, quando plenamente desenvolvidos, se tornam retrospectivos. Não só este vale, mas todo o seu passado terreno terá sido Céu para os que são salvos. Não só o crepúsculo naquela cidade, mas toda a sua vida na terra também, será vista então pelos condenados como sendo o Inferno. É isso que os mortais não entendem. Eles dizem a respeito de um sofrimento temporário: ‘Nenhuma bênção futura poderá compensar-me disso’, sem saber que o Céu, uma vez alcançado, irá operar retroativamente e transformar até mesmo essa agonia em glória. E quanto a algum prazer pecaminoso dizem: ‘Deixe-me ter apenas isso, e aceito as conseqüências’: sem ter idéia de como a condenação retrocederá para o seu passado e irá contaminar o prazer do pecado. Ambos os processos começam mesmo antes da morte. O passado do homem bom passa a modificar-se de forma que seus pecados perdoados e sofrimentos lembrados tomam a qualidade do Céu; o passado do homem mau já se conforma à sua maldade e está cheio apenas de miséria. É por isso que, no fim de todas as coisas, quando o sol nascer aqui e o crepúsculo se transformar em trevas lá, os Santos dirão: ‘Jamais vivemos em lugar algum exceto no Céu’, e os Perdidos, ‘Sempre estivemos no inferno’. E ambos estarão falando a verdade.”

“Isso não é duro demais, senhor?”

“Estou querendo dizer que esse é o sentido real das palavras deles. Na linguagem de fato dos Perdidos, as palavras serão diferentes, sem dúvida. Alguém dirá que sempre serviu seu país, quer certo ou errado; outro afirmará que sacrificou tudo pela sua Arte; e alguns, que nunca foram enganados; e outros ainda que, graças a Deus, sempre se preocuparam com o Número Um, e quase todos, que, pelo menos, sempre foram sinceros consigo mesmos.”

“E os Salvos?”

“Ah, os Salvos... o que acontece com eles é melhor descrito como o oposto de uma miragem. O que pareceu, quando entraram nele, ser o vale do infortúnio se transforma, quando olham para trás, num poço de água pura; e onde a experiência presente só divisou desertos salinos, a memória registra com veracidade que os reservatórios estavam cheios de água.”

“Então os que dizem que Céu e Inferno são apenas estados de mente, estão certos?”

“Quieto”, respondeu com severidade. “Não blasfeme, O inferno é um estado de mente — você jamais disse algo mais verdadeiro. E todo estado de mente, quando deixado entregue a si mesmo, todo encerrar da criatura na prisão de sua própria mente — é, afinal de contas, o inferno. Mas o céu não é um estado de mente. O céu é a própria realidade. Tudo que é realmente verdadeiro é celestial. Pois tudo que pode ser abalado será abalado e só o que é inabalável permanecerá.”

“Mas, existe realmente opção depois da morte? Meus amigos católico-romanos ficariam surpresos, pois para eles as almas no Purgatório já estão salvas. E meus amigos protestantes também não gostariam nada, pois diriam que a árvore fica onde cai.

“Talvez ambos estejam certos. Não se preocupe com tais questões. Você não pode compreender por completo as relações da escolha e do tempo até que supere aos dois. E não foi trazido aqui para estudar tais curiosidades. O que deve interessá-lo é a natureza da escolha em si: e isso você pode observá-los fazendo.”

“Bem, senhor”, respondi, “isso também precisa ser explicado. Qual a opção feita por essas almas que voltam (ainda não vi outras)? E como podem fazer sua escolha?”

“Milton estava certo”, afirmou meu Professor. “A escolha de toda alma perdida pode ser expressa nas palavras: ‘E melhor reinar no inferno do que servir no céu’. Existe sempre algo que insistem em guardar, mesmo ao preço do sofrimento. Existe sempre algo que preferem à alegria — isto é, à realidade. Você pode observar tal coisa na criança mimada que prefere perder a brincadeira e o jantar a pedir desculpas e voltar às boas. Deram a essa atitude o nome de Zanga ou Amuo, mas na vida adulta ela possui uma centena de nomes refinados a ira de Aquiles, o orgulho de Coriolano, Vingança, Mérito e Auto-Respeito Injuriados, Grandeza Trágica e Orgulho Justo.

“Então ninguém se perde através dos vícios indignos, senhor? Mediante a simples sensualidade?”

“Alguns fazem isso, sem dúvida. O sensual, começa perseguindo um prazer real, embora pequeno. Seu pecado é pequeno. Mas chega a hora em que, embora o prazer diminui sempre e o desejo cresça cada vez mais, e embora ele saiba que a felicidade jamais é alcançada dessa forma, mesmo assim prefere à alegria a simples carícia da luxúria insaciável e não pode admitir que isso lhe seja negado. Lutaria até a morte para mantê-lo. Gostaria de poder coçar-se, mas mesmo quando não pode coçar prefere mesmo assim manter o desejo de fazê-lo.”

Ele silenciou por instantes e depois continuou.

“Compreenda, existem inúmeras formas de escolha, e algumas que jamais alguém na terra pensou que existissem. Houve uma criatura que esteve aqui há algum tempo e voltou — Sir Archibald era o seu nome. Na sua vida terrena não se interessava por nada além da simples sobrevivência. Ele tinha escrito uma estante inteira de livros sobre o assunto, tendo começado pela filosofia mas acabando por enfronhar-se na Pesquisa Psíquica. Essa passou a ser a sua única ocupação: experimentos, palestras, publicação de revistas. Ele também viajava: desenterrando histórias fantásticas entre os Lamas do Tibete e sendo iniciado nas irmandades da África Central. Provas e mais provas, e a seguir ainda outras provas — era o que desejava. Ficava louco quando via alguém interessar-se por qualquer outra coisa. Ficou encrencado durante uma das guerras de vocês, andando para baixo e para cima do país, dizendo a todos que não deveriam lutar por ser uma perda de dinheiro que deveria ser gasto em Pesquisas. Bem, na hora oportuna a pobre criatura morreu e veio para cá: e não houve poder algum no universo que pudesse impedi-lo de ficar e ir para as montanhas. Mas você pensa que isso teve qualquer resultado positivo? Absolutamente. Este país não tinha utilidade para ele. Todos aqui já tinham “sobrevivido”. Ninguém se interessou o mínimo pela questão. Nada havia a ser provado. Sua ocupação era inútil. Naturalmente, se tivesse admitido que se enganara, considerando os meios como um fim, e tivesse rido de si mesmo, poderia ter começado tudo de novo como uma criancinha e entrado no gozo. Mas não quis fazer isso. Pouco se importava com a alegria. No final foi-se embora.

“Que coisa fantástica!” comentei.

“Você acha?” perguntou o Professor com um olhar penetrante. “Está mais perto disso do que pensa. Houve homens que se interessaram de tal forma em provar a existência de Deus que acabaram se desinteressando por completo do próprio Deus... como se o bom Senhor nada tivesse a fazer além de existir! Houve alguns tão ocupados em espalhar o cristianismo que jamais deram um pensamento a Cristo. Amigo! Você pode ver isso nas pequenas coisas. Você já conheceu um amante de livros que com todas as suas primeiras edições e obras autografadas tivesse perdido o poder de lê-las? Ou um organizador de obras de caridade que perdesse todo amor pelos pobres? Trata-se da mais sutil de todas as armadilhas.”

Movido por um desejo de mudar de assunto, perguntei por que o Povo Sólido, desde que eles tinham tanto amor, não iam para o Inferno a fim de resgatar os Fantasmas. Por que se contentavam em encontrá-los na planície. Era de se esperar uma piedade mais ativa.”

“Você irá compreender isso melhor, talvez, antes de ir-se”, disse ele. “Nesse meio tempo, devo contar-lhe que eles avançaram por causa dos Fantasmas mais do que você pode compreender. Cada um de nós vive apenas para viajar cada vez mais para dentro das montanhas. Cada um de nós interrompeu essa jornada e retrocedeu distâncias incomensuráveis a fim de estar aqui hoje na simples possibilidade de salvar algum Fantasma. Naturalmente é também agradável fazer isso, mas não pode culpar-nos! E seria inútil avançar além mesmo que fosse possível. Os sãos não fariam bem algum se ficassem loucos para ajudar os loucos.”
“Mas, e os pobres Fantasmas que nem entram no ônibus?”

“Todo aquele que quer faz isso. Não se preocupe. Só há duas espécies de pessoas no final: os que dizem a Deus, ‘Seja feita a Tua vontade’, e aqueles a quem Deus diz: A tua vontade seja feita. Todos os que estão no inferno foi porque o escolheram. Sem essa auto-escolha não haveria inferno. Alma alguma que desejar sincera e constantemente a alegria irá perdê-la. Os que buscam encontram. Para aqueles que batem a porta é aberta.”



quarta-feira, novembro 11, 2009

GENEROSIDADE


Na foto: Ed René Kivitz



A generosidade é a virtude que transcende a justiça. Justiça é dar a cada um o que lhe é de direito. Generosidade é distribuir o que pertence ao doador, que abre mão da posse porque se alegra mais em compartir do que em reter. Justiça é dar pão a quem tem fome. Por esta razão, é preciso ser justo antes de ser generoso, disse Chamfort. A generosidade, disse Hume, se fosse absoluta e universal, nos dispensaria da justiça.
O tributo é a dádiva da obrigação: dar a César o que é de César. A oferta generosa é a dádiva do coração: dar a Deus o que é de Deus, pois a Deus não se dá por obrigação. A solidariedade é a dádiva da responsabilidade, ou como ensinou Martin Luther King Jr., "a injustiça em algum lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares", ecoando Abraham Lincoln: "Ao darmos liberdade aos escravos, estamos garantindo a liberdade aos que são livres". A generosidade é dádiva da liberdade-liberalidade, de quem possui, mas não é possuído. A solidariedade é a dádiva da consciência. A generosidade é a dádiva do coração. Na solidariedade há inteligência, na generosidade, afeição.
Amar ao próximo como a si mesmo é solidariedade, e nesse sentido, a solidariedade é uma forma de amor indireto por si mesmo: cuidando dele, cuido de mim, ou, no mínimo, mostro como se deve cuidar de alguém, caso um dia esteja eu no lugar do próximo que ora ajudo. Amar ao próximo com o amor de Cristo é amar ao próximo inclusive às custas do sacrifício de si mesmo, estou disposto a dar do meu para que o outro jamais tenha falta, não me importando sequer se a falta será minha.
Amigos de verdade, observou Montaigne, não se pode emprestar nem se dar nada, pois tudo é comum entre eles. Assim viveram os primeiros cristãos: ninguém considerava propriamente seu o que possuía, pois tinham tudo em comum. Nesse caso, a generosidade se destina ao outro, ao estranho, e mesmo ao inimigo. Que virtude em ser generoso com os filhos, já que a felicidade dos filhos é a felicidade dos pais?
Comte-Sponville pergunta: que porcentagem de sua renda familiar você consagra a despesas que se possam chamar de generosidade, em outras palavras, a uma felicidade diferente da sua ou de seus íntimos? Ele mesmo responde: cada um responderá por sua conta, mas imagino que estamos quase todos abaixo dos 10%, e muitas vezes, faça o cálculo, abaixo de 1%. Certo, o dinheiro não é tudo, diz ele, mas porque milagre seríamos mais generosos nos domínios não financeiros ou não quantificáveis? Por que teríamos o coração mais aberto do que a carteira? O inverso é mais verossímil.
De fato, Jesus tinha mesmo razão ao afirmar que mais bem aventurada coisa é dar do que receber. Alguém com raciocínio lógico concordaria: em melhor condição está quem dá do quem recebe. Mas tal raciocínio é egoísta: prefiro dar do que receber, porque isso significa que tenho mais do que aquele que recebe, ou pior, um raciocínio mesquinho: antes ele do que eu. A bem aventurança de dar implica a constatação de que já estamos livres de possuir e ser possuídos. Para quem é livre dar não é obrigação, responsabilidade ou solidariedade. Para quem é livre, dar é amor. Por isso é que se diz que é possível dar sem amar, mas é impossível amar sem dar.

Ed René Kivitz