terça-feira, novembro 14, 2006

Cigarras

Quem nunca leu a história da cigarra que fazia da vida uma canção sem fim, a despeito da formiga proletária e utilitarista que, uma vez inserida no sistema do capital, fazia do trabalho algo maior que a vida?


As cigarras desde então me cativaram.


Sim, sei que o objetivo do livro, e o seu fim deixa claro isso, é dar a lição de moral na direção inversa: honrar a formiga e corrigir a cigarra.


Sempre achei essa história muito estranha. Honrar a formiga me parecia uma apologia ao capitalismo. Afinal, pra ela o que valia era o trincar da caixa registradora. Isso era a sua música. A sua sobrevivência era a própria vivência.


A cigarra, pra mim, é a esperta da história. Sem que, na época, me dasse conta: era com ela que eu me identificava.


Mas o tempo passou e minhas tendências se infiltraram no incosciente.
Foi então que me deparei com uma cigarra, não uma normal, uma em versos, e toda essa idéia ressurgiu novamente...



Cigarras (Cacau Novaes)

Existe uma cigarra

Em cada um de nós

Cantando, enquanto o outro trabalha.

Existem cigarras

Milhares de cigarras graúdas

Enormes

De vozes afinadíssimas.

Existem cigarras

Passeando sobre discos

Emitindo sons.

Sons estranhos, sons belos

Que ninguém nunca ouviu.

Existem em toda parte

Cigarras que cantam

Músicas soltas no ar.


Todos nós temos um quê de cigarra, o canto sempre nos lábios. Um ritmo interior que existe pra tornar a vida mais alegre, mais divertida, mais dançante. Ela bem que pode representar um arquétipo da alma humana.


Sabe o que eu acho interessante nesses animais barulhentos? Não, elas não fazem do canto, algo mais importante do que a vida! Não morrem de tanto cantar, nem cantam pra morrer. Mas apenas vêem no cantar a verdadeira vida. A morte é o "não cantar mais". Ou seja, pra quem é cigarra o "não cantar mais" que é morte.


Realmente, existe uma cigarra, em cada um de nós. Não um canto! ... Uma vontade de cantar... de fugir com o cântico:


"Em outros tempos, falava-se muito mal da alienação. A palavra “alienado” era usada como xingamento. Alienação era uma doença pessoal e política a ser denunciada e combatida. A palavra alienação vem do latim alienum que quer dizer “que pertence a um outro”. Daí a expressão alienar um imóvel. Pois a música produz alienação: ela me faz sair do meu mundo medíocre e entrar num outro, de beleza e formas perfeitas. Nesse outro mundo eu me liberto da pequenez e picuinhas do meu cotidiano e experimento, ainda que momentaneamente, uma felicidade divina."


Marx concordaria que o canto é o ópio das cigarras. Mas tudo o que Marx precisava para relaxar era de música...

“Existe uma cigarra

Em cada um de nós

Cantando, enquanto o outro trabalha.”


Ah! sim, Existe essa cigarra em nós! Um cântico que não cessa. Mas não um cântico reprimido: preso num corpo que não o acompanha, mas um cântico que baila em nosso interior e faz dançar a alma do corpo que trabalha. Essa lição os comunistas tocadores de flauta (esse o aspecto negativo da cigarra da historinha) não aprenderam com a religião. O religioso não foge, ele ouve sons diferentes. E isso ritmifica a vida.


Não, não é uma questão de fuga. É uma questão de existirem cigarras.
Mais de uma. Várias.


Cigarras imortais, que cantam o retorno. Voz da saudade, lembrança do lugar onde o cantar não nos consumia.


Lá, o canto é vida, não morte. Não tínhamos que abandonar nossos cascos. Não havia cascos.
Porém cá, o canto é alívio.


Já pensou se desse a louca na formiga e ela resolvesse ouvir músicas?