sexta-feira, fevereiro 26, 2010

ESPERANÇA (Por C. S. Lewis)




A esperança é uma das virtudes teológicas. Isso quer dizer que (ao contrário do que o homem moderno pen­sa) o anseio contínuo pelo mundo eterno não é uma forma de escapismo ou de auto-ilusão, mas uma das coi­sas que se espera do cristão.
Não significa que se deve deixar o mundo presente tal como está. Se você estudar a história, verá que os cristãos que mais trabalharam por este mundo eram exatamente os que mais pensavam no outro mundo. Os apóstolos, que desencadearam a con­versão do Império Romano, os grandes homens que erigiram a Idade Média, os protestantes ingleses que abo­liram o tráfico de escravos - todos deixaram sua marca sobre a Terra precisamente porque suas mentes estavam ocupadas com o Paraíso. Foi quando os cristãos deixa­ram de pensar no outro mundo que se tornaram tão incompetentes neste aqui. Se você aspirar ao Céu, ga­nhará a Terra "de lambuja"; se aspirar à Terra, perderá ambos.
A maioria de nós acha muito difícil desejar o "Pa­raíso" - a não ser que por esse nome queiramos dizer o encontro com os amigos que já morreram. Uma das ra­zões dessa dificuldade é que não tivemos uma boa forma­ção: toda a educação atual tende a fixar nossa atenção neste mundo. Outra razão é que, quando o verdadeiro anseio pelo Paraíso está presente em nós, não o reconhe­cemos. A maior parte das pessoas, se tivesse aprendido a examinar profundamente seus corações, saberia que querem, e querem com veemência, algo que não pode ser alcançado neste mundo. Existem aqui coisas prazerosas de todo tipo que nos prometem isso que queremos, mas que nunca cumprem o prometido. Aquele anseio que nasce em nós quando nos apaixonamos pela primei­ra vez, quando pela primeira vez pensamos numa terra estrangeira, quando começamos a estudar um assunto que nos entusiasma, é um anseio que nenhum casamen­to, viagem ou estudo pode realmente satisfazer. Não es­tou falando aqui do que costumam chamar de casa­mentos infelizes, férias frustradas e carreiras fracassadas, mas sim das melhores possibilidades em cada um des­ses campos. Havia algo que vislumbramos no primeiro instante de encantamento e que simplesmente desapa­rece quando o anseio se torna realidade. Acho que todos sabem do que estou falando. A esposa pode ser uma boa esposa, os hotéis e a paisagem podem ter sido excelen­tes, e talvez a Química seja uma bela profissão: algo, po­rém, nos escapou. Ora, existem duas maneiras erradas, e uma certa, de lidar com esse fato.
(1) A Via do Tolo — Ele põe a culpa nas próprias coisas. Passa a vida toda a conjectutar que, se arranjasse outra mulher, fizesse uma viagem mais cara, ou seja lá o que for, conseguiria dessa vez capturar essa coisa mis­teriosa que todos nós procuramos. A maior parte dos ri­cos entediados e descontentes do nosso mundo são des­se tipo. Eles passam a vida toda pulando de uma mulher para outra (com a ajuda dos tribunais), de continente para continente, de passatempo para passatempo, sempre na esperança de que o último será, enfim, "a coisa certa", e sempre decepcionados.
(2)  A Via do "Homem Sensato" Desiludido - Logo ele conclui que tudo não passava de conversa fiada. "É bem verdade", diz ele, "que, quando é jovem, a pessoa se sente assim. Quando chega à minha idade, porém, você desiste de buscar o fim do arco-íris." Então, ele se acomoda, aprende a não esperar muito da vida e repri­me a parte de si mesmo que, nas suas palavras, costuma­va "uivar para a lua". Essa é, sem dúvida, uma via bem melhor que a primeira; torna o homem mais feliz e não faz dele um problema para a sociedade. Tende a torná-lo um chato (sempre pronto a se achar superior diante dos que julga "adolescentes"), mas, de maneira geral, faz com que ele leve uma vida sem grandes sobressaltos. Seria a melhor opção se o homem não tivesse uma vida eter­na. Mas suponha que a felicidade infinita realmente exis­ta e esteja logo ali, à nossa espera. Suponha que real­mente seja possível alcançar o fim do arco-íris — nesse caso, seria uma pena descobrir tarde demais (imediata­mente após a morte) que, por causa do nosso suposto "bom senso", sufocamos em nós mesmos a faculdade de gozar dessa felicidade.
(3)  A Via Cristã - Dizem os cristãos: "As criaturas não nascem com desejos que não podem ser satisfeitos. Um bebê sente fome: bem, existe o alimento. Um pati­nho gosta de nadar: existe a água. O homem sente o de­sejo sexual: existe o sexo. Se descubro em mim um dese­jo que nenhuma experiência deste mundo pode satis­fazer, a explicação mais provável é que fui criado para um outro mundo. Se nenhum dos prazeres terrenos satis­faz esse desejo, isso não prova que o universo é uma tre­menda enganação. Provavelmente, esses prazeres não existem para satisfazer esse desejo, mas só para desper­tá-lo e sugerir a verdadeira satisfação. Se assim for, tenho de tomar cuidado, por um lado, para nunca desprezar as bênçãos terrenas nem deixar de ser grato por elas; por outro, para nunca tomá-las pelo 'algo a mais' do qual são apenas a cópia, o eco ou a miragem. Tenho de man­ter viva em mim a chama do desejo pela minha verda­deira terra natal, a qual só encontrarei depois da morte; e jamais permitir que ela seja arrasada ou caia no esque­cimento. Tenho de fazer com que o principal objetivo de minha vida seja buscar essa terra e ajudar as outras pessoas a buscá-la também."
Não devemos nos preocupar com os irônicos que tentam ridicularizar a esperança cristã do "Paraíso" di­zendo que "não querem passar a eternidade tocando har­pa". A resposta que devemos dar a essas pessoas é que, se elas não entendem os livros que são escritos para adultos, não devem palpitar sobre eles. Todas as imagens das Escrituras (as harpas, as coroas, o ouro etc.) são, ob­viamente, uma tentativa simbólica de expressar o inexprimível. Os instrumentos musicais são mencionados porque, para muita gente (não todos), a música é o ob­jeto conhecido nesta vida que mais fortemente sugere o êxtase e a infinitude. A coroa é mencionada para nos dar a entender que todo aquele que estiver reunido com Deus na eternidade tem parte no seu esplendor, no seu poder e na sua alegria. O ouro é citado para nos dar a idéia da eternidade do Paraíso (o ouro não enferruja) e também da sua preciosidade. As pessoas que entendem esses sím­bolos literalmente poderiam também pensar que, quan­do Cristo nos exortou a ser como as pombas, quis dizer que deveríamos botar ovos.

quarta-feira, janeiro 13, 2010

O Pecador e o pecado





Tiago e João também são veementes com relação a todos os dois extremos da doutrina do pecado. Há os que dizem: “a nossa natureza é caída mesmo, logo não adianta fazer nada a respeito”. A esses eles dizem: “A fé sem obras é morta”(Tiago 2.17); ou: “Aquele que diz que permanece nele, deve também andar assim como ele andou”; ou: “todo aquele que permanece nele não vive pecando; todo aquele que vive pecando não o viu, nem o conheceu”; ou: “aquele que pratica o pecado procede do Diabo”(I João 2.3;3.8). Há outros que dizem: “já que eu sou nascido de novo, então isto significa que eu tenho poder para não pecar mais”. A esses Tiago e João dizem: “Pois, qualquer que guarda toda Lei, mais tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos”(Tiago 2.10); ou: “Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós”; ou ainda: “Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está em nós”( I João 1.7-10). Ora, o equilíbrio bíblico é aquele que diz: “Eu sei que sou um pecador que foi redimido pelo sangue de Jesus, mas que precisa crucificar as concupiscência da carne todos os dias, pois a minha natureza é caída e rebelada contra a Lei de Deus. Pôr isto, eu preciso andar no Espírito e no amor a fim de que eu não alimente minha natureza caída, ainda que, eu mesmo saiba, que conquanto não viva mais na prática do pecado, eu não me livro de reconhecer todos os dias que eu sou pecador e que, por essa mesma razão, peco mesmo quando penso que não peco. No entanto, eu me escondo e me glorio na Cruz de Jesus: onde meu pecado foi pago e de onde eu recebo Graça para purificar meus pecados e receber perdão para as eventuais ou freqüentes contradições do meu ser. No entanto, eu sei que a Graça que me perdoa, é também a Graça que me transforma e santifica. Daí, eu querer e poder viver em santidade, ainda que eu seja um pecador”.

Caio Fábio, Oração Para Viver e Morrer, 1990.

quinta-feira, novembro 26, 2009

Papo de Graça - C. S. Lewis e George MacDonald




Abaixo, uma conversa imaginária criada por Lewis em O grande abismo, entre ele e o Professor - George MacDonald, que é um dos responsáveis pelo seu encontro com a Alegria, e por aquilo que ele chama de ‘conversão da imaginação’.

O grande abismo (também traduzido como O grande divórcio) é um livro alegórico e deve ser encarado como tal. O subtítulo do livro evidencia seu tema: uma viagem das profundezas do inferno à superfície do céu. E é esse o cenário da conversa: a superfície do céu, onde os Fantasmas [perdidos] que querem, tem acesso.

OBS - As idéias do Lewis devem ser extraídas à luz de suas outras obras. A dica é: no livro O problema do sofrimento ele dedica capítulos inteiros sobre o céu e sobre o inferno.

Boa leitura!


***

“Meu nome é George”, respondeu. “George Mac Donald.”

“Ó!” exclamei. “Pode então dizer-me. Pelo menos não vai enganar-me.” Supondo então que tais expressões de confiança precisavam ser explicadas, tentei, tremendo, contar-lhe tudo o que seus escritos tinham feito por mim. Procurei falar sobre certa tarde gelada numa estação de trens quando comprei uma cópia de sua obra Phantastes (eu tinha na época cerca de dezesseis anos) que foi para mim o que a primeira visão de Beatriz foi para Dante: Este é o começo da Nova Vida. Passei a confessar quanto tempo essa Vida permanecera apenas na imaginação: como lentamente e com relutância viera a admitir que o seu cristianismo tinha uma ligação mais do que acidental com ela, como tentara duramente não ver que o verdadeiro nome da qualidade que o primeiro se defrontou comigo em seus livros era Santidade. Ele colocou a mão sobre a minha e me fez parar.

“Filho”, disse ele, “O seu amor — todo amor — tem um valor indizível para mim. Mas pode poupar-me um tempo preciso (e ele nessa hora pareceu realmente um escocês) se eu lhe disser que já tenho perfeito conhecimento desses detalhes biográficos. De fato, percebi que sua memória o trai em um ou dois pontos.”

“Oh!” disse eu, e fiquei calado.

“Você tinha começado”, falou meu Professor, “a tratar de algo mais proveitoso.”

“Senhor”, respondi, “tinha quase me esquecido, e não me preocupo com a resposta agora, embora esteja ainda curioso sobre uma coisa. Trata-se desses Fantasmas. Algum deles fica? Podem ficar? Existe realmente uma opção para eles? Como chegam aqui?”
“Você nunca ouviu falar do Refrigério? Um homem com as suas vantagens poderia tê-lo lido em Prudêncio, para não mencionar Jeremy Taylor.”

“O nome me soa familiar, senhor, mas acho que esqueci do seu significado.”

Significa que os condenados têm feriados — excursões, você compreende.”

“Excursões a este país?”

“Para aqueles que quiserem fazê-las. Naturalmente a maioria dessas tolas criaturas não quer. Preferem viajar de volta para a terra. Vão e enganam as parvas mulheres chamadas médiuns. Vão para lá e tentam apossar-se de alguma propriedade que antes lhes pertenceu, e é assim que surgem as casas mal assombradas. Ou vão espreitar os seus filhos. Os fantasmas literatos ficam rondando as bibliotecas públicas para ver se alguém lê os seus livros.”

“Mas se vierem aqui, podem realmente ficar?”

“Naturalmente. Você deve ter ouvido que o imperador Trajano fez isso.”

“Mas, não entendo. O juízo não é final? Existe mesmo um meio de sair do inferno e ir para o céu?”

“Isso depende da maneira como você usa as palavras. Se eles deixarem para trás aquela cidade cinza não terá sido o Inferno. Para quem quer que a deixe, ela é o Purgatório. E talvez seja melhor você não chamar este país de Céu. Não Céu Profundo, compreende?” (E aqui ele sorriu para mim.) “Pode chamá-lo de Vale da Sombra da Vida. Entretanto, para os que ficam aqui terá sido Céu desde o princípio. E pode chamar aquelas ruas tristes na cidade lá longe de Vale da Sombra da Morte: mas para os que ali permanecem terão sido inferno desde o começo.”

Suponho que viu que eu parecia confuso, pois continuou.

“Filho”, disse, “no seu estado atual você não pode compreender a eternidade: quando Anodos olhou através da porta do Eterno ele não levou de volta qualquer mensagem. Mas você pode obter uma semelhança dela se disser que tanto o bem como o mal, quando plenamente desenvolvidos, se tornam retrospectivos. Não só este vale, mas todo o seu passado terreno terá sido Céu para os que são salvos. Não só o crepúsculo naquela cidade, mas toda a sua vida na terra também, será vista então pelos condenados como sendo o Inferno. É isso que os mortais não entendem. Eles dizem a respeito de um sofrimento temporário: ‘Nenhuma bênção futura poderá compensar-me disso’, sem saber que o Céu, uma vez alcançado, irá operar retroativamente e transformar até mesmo essa agonia em glória. E quanto a algum prazer pecaminoso dizem: ‘Deixe-me ter apenas isso, e aceito as conseqüências’: sem ter idéia de como a condenação retrocederá para o seu passado e irá contaminar o prazer do pecado. Ambos os processos começam mesmo antes da morte. O passado do homem bom passa a modificar-se de forma que seus pecados perdoados e sofrimentos lembrados tomam a qualidade do Céu; o passado do homem mau já se conforma à sua maldade e está cheio apenas de miséria. É por isso que, no fim de todas as coisas, quando o sol nascer aqui e o crepúsculo se transformar em trevas lá, os Santos dirão: ‘Jamais vivemos em lugar algum exceto no Céu’, e os Perdidos, ‘Sempre estivemos no inferno’. E ambos estarão falando a verdade.”

“Isso não é duro demais, senhor?”

“Estou querendo dizer que esse é o sentido real das palavras deles. Na linguagem de fato dos Perdidos, as palavras serão diferentes, sem dúvida. Alguém dirá que sempre serviu seu país, quer certo ou errado; outro afirmará que sacrificou tudo pela sua Arte; e alguns, que nunca foram enganados; e outros ainda que, graças a Deus, sempre se preocuparam com o Número Um, e quase todos, que, pelo menos, sempre foram sinceros consigo mesmos.”

“E os Salvos?”

“Ah, os Salvos... o que acontece com eles é melhor descrito como o oposto de uma miragem. O que pareceu, quando entraram nele, ser o vale do infortúnio se transforma, quando olham para trás, num poço de água pura; e onde a experiência presente só divisou desertos salinos, a memória registra com veracidade que os reservatórios estavam cheios de água.”

“Então os que dizem que Céu e Inferno são apenas estados de mente, estão certos?”

“Quieto”, respondeu com severidade. “Não blasfeme, O inferno é um estado de mente — você jamais disse algo mais verdadeiro. E todo estado de mente, quando deixado entregue a si mesmo, todo encerrar da criatura na prisão de sua própria mente — é, afinal de contas, o inferno. Mas o céu não é um estado de mente. O céu é a própria realidade. Tudo que é realmente verdadeiro é celestial. Pois tudo que pode ser abalado será abalado e só o que é inabalável permanecerá.”

“Mas, existe realmente opção depois da morte? Meus amigos católico-romanos ficariam surpresos, pois para eles as almas no Purgatório já estão salvas. E meus amigos protestantes também não gostariam nada, pois diriam que a árvore fica onde cai.

“Talvez ambos estejam certos. Não se preocupe com tais questões. Você não pode compreender por completo as relações da escolha e do tempo até que supere aos dois. E não foi trazido aqui para estudar tais curiosidades. O que deve interessá-lo é a natureza da escolha em si: e isso você pode observá-los fazendo.”

“Bem, senhor”, respondi, “isso também precisa ser explicado. Qual a opção feita por essas almas que voltam (ainda não vi outras)? E como podem fazer sua escolha?”

“Milton estava certo”, afirmou meu Professor. “A escolha de toda alma perdida pode ser expressa nas palavras: ‘E melhor reinar no inferno do que servir no céu’. Existe sempre algo que insistem em guardar, mesmo ao preço do sofrimento. Existe sempre algo que preferem à alegria — isto é, à realidade. Você pode observar tal coisa na criança mimada que prefere perder a brincadeira e o jantar a pedir desculpas e voltar às boas. Deram a essa atitude o nome de Zanga ou Amuo, mas na vida adulta ela possui uma centena de nomes refinados a ira de Aquiles, o orgulho de Coriolano, Vingança, Mérito e Auto-Respeito Injuriados, Grandeza Trágica e Orgulho Justo.

“Então ninguém se perde através dos vícios indignos, senhor? Mediante a simples sensualidade?”

“Alguns fazem isso, sem dúvida. O sensual, começa perseguindo um prazer real, embora pequeno. Seu pecado é pequeno. Mas chega a hora em que, embora o prazer diminui sempre e o desejo cresça cada vez mais, e embora ele saiba que a felicidade jamais é alcançada dessa forma, mesmo assim prefere à alegria a simples carícia da luxúria insaciável e não pode admitir que isso lhe seja negado. Lutaria até a morte para mantê-lo. Gostaria de poder coçar-se, mas mesmo quando não pode coçar prefere mesmo assim manter o desejo de fazê-lo.”

Ele silenciou por instantes e depois continuou.

“Compreenda, existem inúmeras formas de escolha, e algumas que jamais alguém na terra pensou que existissem. Houve uma criatura que esteve aqui há algum tempo e voltou — Sir Archibald era o seu nome. Na sua vida terrena não se interessava por nada além da simples sobrevivência. Ele tinha escrito uma estante inteira de livros sobre o assunto, tendo começado pela filosofia mas acabando por enfronhar-se na Pesquisa Psíquica. Essa passou a ser a sua única ocupação: experimentos, palestras, publicação de revistas. Ele também viajava: desenterrando histórias fantásticas entre os Lamas do Tibete e sendo iniciado nas irmandades da África Central. Provas e mais provas, e a seguir ainda outras provas — era o que desejava. Ficava louco quando via alguém interessar-se por qualquer outra coisa. Ficou encrencado durante uma das guerras de vocês, andando para baixo e para cima do país, dizendo a todos que não deveriam lutar por ser uma perda de dinheiro que deveria ser gasto em Pesquisas. Bem, na hora oportuna a pobre criatura morreu e veio para cá: e não houve poder algum no universo que pudesse impedi-lo de ficar e ir para as montanhas. Mas você pensa que isso teve qualquer resultado positivo? Absolutamente. Este país não tinha utilidade para ele. Todos aqui já tinham “sobrevivido”. Ninguém se interessou o mínimo pela questão. Nada havia a ser provado. Sua ocupação era inútil. Naturalmente, se tivesse admitido que se enganara, considerando os meios como um fim, e tivesse rido de si mesmo, poderia ter começado tudo de novo como uma criancinha e entrado no gozo. Mas não quis fazer isso. Pouco se importava com a alegria. No final foi-se embora.

“Que coisa fantástica!” comentei.

“Você acha?” perguntou o Professor com um olhar penetrante. “Está mais perto disso do que pensa. Houve homens que se interessaram de tal forma em provar a existência de Deus que acabaram se desinteressando por completo do próprio Deus... como se o bom Senhor nada tivesse a fazer além de existir! Houve alguns tão ocupados em espalhar o cristianismo que jamais deram um pensamento a Cristo. Amigo! Você pode ver isso nas pequenas coisas. Você já conheceu um amante de livros que com todas as suas primeiras edições e obras autografadas tivesse perdido o poder de lê-las? Ou um organizador de obras de caridade que perdesse todo amor pelos pobres? Trata-se da mais sutil de todas as armadilhas.”

Movido por um desejo de mudar de assunto, perguntei por que o Povo Sólido, desde que eles tinham tanto amor, não iam para o Inferno a fim de resgatar os Fantasmas. Por que se contentavam em encontrá-los na planície. Era de se esperar uma piedade mais ativa.”

“Você irá compreender isso melhor, talvez, antes de ir-se”, disse ele. “Nesse meio tempo, devo contar-lhe que eles avançaram por causa dos Fantasmas mais do que você pode compreender. Cada um de nós vive apenas para viajar cada vez mais para dentro das montanhas. Cada um de nós interrompeu essa jornada e retrocedeu distâncias incomensuráveis a fim de estar aqui hoje na simples possibilidade de salvar algum Fantasma. Naturalmente é também agradável fazer isso, mas não pode culpar-nos! E seria inútil avançar além mesmo que fosse possível. Os sãos não fariam bem algum se ficassem loucos para ajudar os loucos.”
“Mas, e os pobres Fantasmas que nem entram no ônibus?”

“Todo aquele que quer faz isso. Não se preocupe. Só há duas espécies de pessoas no final: os que dizem a Deus, ‘Seja feita a Tua vontade’, e aqueles a quem Deus diz: A tua vontade seja feita. Todos os que estão no inferno foi porque o escolheram. Sem essa auto-escolha não haveria inferno. Alma alguma que desejar sincera e constantemente a alegria irá perdê-la. Os que buscam encontram. Para aqueles que batem a porta é aberta.”



quarta-feira, novembro 11, 2009

GENEROSIDADE


Na foto: Ed René Kivitz



A generosidade é a virtude que transcende a justiça. Justiça é dar a cada um o que lhe é de direito. Generosidade é distribuir o que pertence ao doador, que abre mão da posse porque se alegra mais em compartir do que em reter. Justiça é dar pão a quem tem fome. Por esta razão, é preciso ser justo antes de ser generoso, disse Chamfort. A generosidade, disse Hume, se fosse absoluta e universal, nos dispensaria da justiça.
O tributo é a dádiva da obrigação: dar a César o que é de César. A oferta generosa é a dádiva do coração: dar a Deus o que é de Deus, pois a Deus não se dá por obrigação. A solidariedade é a dádiva da responsabilidade, ou como ensinou Martin Luther King Jr., "a injustiça em algum lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares", ecoando Abraham Lincoln: "Ao darmos liberdade aos escravos, estamos garantindo a liberdade aos que são livres". A generosidade é dádiva da liberdade-liberalidade, de quem possui, mas não é possuído. A solidariedade é a dádiva da consciência. A generosidade é a dádiva do coração. Na solidariedade há inteligência, na generosidade, afeição.
Amar ao próximo como a si mesmo é solidariedade, e nesse sentido, a solidariedade é uma forma de amor indireto por si mesmo: cuidando dele, cuido de mim, ou, no mínimo, mostro como se deve cuidar de alguém, caso um dia esteja eu no lugar do próximo que ora ajudo. Amar ao próximo com o amor de Cristo é amar ao próximo inclusive às custas do sacrifício de si mesmo, estou disposto a dar do meu para que o outro jamais tenha falta, não me importando sequer se a falta será minha.
Amigos de verdade, observou Montaigne, não se pode emprestar nem se dar nada, pois tudo é comum entre eles. Assim viveram os primeiros cristãos: ninguém considerava propriamente seu o que possuía, pois tinham tudo em comum. Nesse caso, a generosidade se destina ao outro, ao estranho, e mesmo ao inimigo. Que virtude em ser generoso com os filhos, já que a felicidade dos filhos é a felicidade dos pais?
Comte-Sponville pergunta: que porcentagem de sua renda familiar você consagra a despesas que se possam chamar de generosidade, em outras palavras, a uma felicidade diferente da sua ou de seus íntimos? Ele mesmo responde: cada um responderá por sua conta, mas imagino que estamos quase todos abaixo dos 10%, e muitas vezes, faça o cálculo, abaixo de 1%. Certo, o dinheiro não é tudo, diz ele, mas porque milagre seríamos mais generosos nos domínios não financeiros ou não quantificáveis? Por que teríamos o coração mais aberto do que a carteira? O inverso é mais verossímil.
De fato, Jesus tinha mesmo razão ao afirmar que mais bem aventurada coisa é dar do que receber. Alguém com raciocínio lógico concordaria: em melhor condição está quem dá do quem recebe. Mas tal raciocínio é egoísta: prefiro dar do que receber, porque isso significa que tenho mais do que aquele que recebe, ou pior, um raciocínio mesquinho: antes ele do que eu. A bem aventurança de dar implica a constatação de que já estamos livres de possuir e ser possuídos. Para quem é livre dar não é obrigação, responsabilidade ou solidariedade. Para quem é livre, dar é amor. Por isso é que se diz que é possível dar sem amar, mas é impossível amar sem dar.

Ed René Kivitz

quarta-feira, outubro 28, 2009

Aceitação e mudança









Almir Linhares

Pressa

Uma questão familiar àqueles que lidam com psicoterapia ou aconselhamento, é que muitas pessoas que vêm em busca de ajuda trazem um desejo de mudança ou de solução rápida do problema que estão vivendo. Existe, com frequência, uma expectativa imediata de cura ou resolução da situação conflitiva. Às vezes, na primeira entrevista, logo após expor o problema, a pessoa já diz: "Minha situação é esta... e agora, o que eu faço?"
É natural, diante dos transtornos que muitas situações da vida nos trazem, que desejemos resolver rapidamente nossos problemas. No entanto, uma análise dessa pressa pode revelar-nos que a pessoa está tentando evitar alguma coisa. Antes mesmo de ter a consciência da verdadeira dimensão do problema, antes mesmo de compreendê-lo e aceitá-lo em toda a sua extensão, ela espera resolvê-lo. É comum não querermos nos dedicar, com disposição e paciência, à análise do problema. Queremos, avidamente, respostas. Nossa tendência é saltar rapidamente o problema (passar por cima) e procurar atalhos que nos levem logo à solução.
Diante disso, podemos perguntar: Por que é tão difícil aceitar um problema e se deter melhor sobre ele?

Aceitação

Para responder a esta questão é necessário definir melhor o que entendemos por aceitação. A aceitação não é meramente um problema intelectual, lógico, racional. A aceitação é principalmente uma questão emocional. Ela nos remete ao mundo dos sentimentos: raiva, tristeza, alegria, medo etc. Os afetos nos mobilizam a partir de nosso íntimo. Emocionar-se é reagir à vida e expressar-se diante do que ela apresenta. As emoções estão intimamente ligadas com as possibilidades de expressão do nosso ser. De um lado, podemos associar um grupo de sentimentos, tais como a alegria e o entusiasmo, aos momentos de expressão mais plena de vida. De outro, os sentimentos ligados à raiva e à tristeza estão relacionados aos momentos em que há perdas e dificuldades na vida.
Nosso modo de fazer frente à vida é estruturado muito mais a partir das emoções do que a partir de uma elaboração racional ou lógica da realidade. As emoções tocam no centro da nossa vida. Elas nos indicam a existência de situações ameaçadoras (por exemplo, quando sentimos medo) e também nos sinalizam as possibilidades de realização e êxito (por exemplo, a alegria). A emoção é algo vital para todos nós. Ela pode tanto nos impulsionar para o pensamento de ação, como bloquear-nos, atrapalhar-nos e mesmo imobilizar-nos. Lidar com as emoções, aceitá-las e integrá-las é condição para a expressão plena de nossa pessoa. Contudo, essa integração pode ser difícil, pois uma parte de nossas experiências emocionais nos são desagradáveis, envolvem sentimentos de tristeza, raiva, decepção, frustração etc. Ocorre que nós nos protegemos do sofrimento e muitas vezes queremos viver como se ele não existisse. Assim, procuramos evitar as lembranças, pensamentos e situações que despertam sentimentos desagradáveis. E aqui surge a questão da aceitação. Tomar consciência de nossos problemas é também entrar em contato com sentimentos dolorosos e difíceis de serem suportados. Aceitar nossos problemas e dificuldades reais é algo que fere nossas fantasias e desejos de perfeição e harmonia constantes. Os nossos conflitos e dificuldades diante da vida apontam para os limites, necessidades e falhas existentes em nós e nos outros. A este respeito, existe um pequeno mas tocante texto de Paul Tournier (publicado no Brasil pelo CPPC, com o título Quando ousei compartilhara mim mesmo), no qual, com a simplicidade e humanidade características do seu estilo, através de um depoimento pessoal, ele nos mostra como tendemos a evitar pensar nos pequenos e triviais problemas do cotidiano, porque eles nos remetem a situações incômodas e nos mostram como de fato somos.
A aceitação dos problemas e das dificuldades confronta-nos com a falta e com a dor, e, em última análise, com nossa dependência e com a morte. Não é de causar surpresa, portanto, que, frequentemente, nos refugiemos em um mundo de fantasias, no qual estamos sempre suspirando diante da realidade: "Como seria bom, se fosse diferente!" Mas, se somos demasiadamente influenciados por nossos desejos, podemos não ser capazes de perceber a realidade como de fato ela é. A percepção e aceitação da realidade nos permite ver onde estamos. Assim, pelo menos pode-se ter uma base verdadeira, a partir da qual se pode trabalhar.
Aceitar um problema, uma situação ou nossa própria história é poder parar. É se deter, pensar e sentir sobre o que essa situação ou lembrança realmente significa para nós. O momento de reconhecimento e aceitação é um momento inicial que pode nos permitir analisar mais profundamente a situação em que estamos. Somente a partir disso podemos pensar em seguir adiante e construir algo novo, sem precipitação nem ansiedade (ou, pelo menos, com elas em menor grau). Somente assim poderemos resolver melhor nossos problemas e buscar mudanças verdadeiras, e não através de atalhos nem soluções escapistas. Uma constatação realista das situações que estamos vivendo coloca-nos diante de nós mesmos e diante do que a vida nos apresenta, o que, muitas vezes, não é o que gostaríamos que fosse.


Risco

Para que alcancemos mudanças, é necessário correr riscos. Em um de seus livros, Tournier nos fala da "aventura da vida". De modo geral, não queremos aventura ou talvez a queiramos apenas nos filmes e nos livros. Na vida real o que costumamos querer é garantias, segurança. Em outras palavras, podemos dizer que, diante dos problemas da vida, queremos aceitá-los ou decidir sobre eles condicionalmente, isto é, desde que haja garantias de que tudo vai dar certo. A incerteza, o risco, não queremos aceitar.
Gostamos de caminhos bem definidos, de clareza em relação às decisões que estamos tomando. No entanto, não temos como fugir da responsabilidade e do risco que as decisões, pequenas ou grandes, nos impõem no dia a dia. Humanamente falando, não há soluções perfeitas. E é importante ressaltar que, mesmo conhecendo e aceitando a realidade, não há garantias de que nossas decisões serão acertadas. O saber não é uma garantia. Viver, decidir, fazer escolhas é um risco permanente. Nós erramos, mesmo sabendo e conhecendo. O fracasso é uma contingência do existir. Não somos Deus. Não somos onipotentes nem oniscientes, como parece que Adão pretendeu ser: conhecedor do bem e do mal, tendo capacidade de discernir tudo com clareza.
Viver é um ato de fé. E aqui começamos a sair da Psicologia e entramos no terreno religioso, pois o que estamos afirmando nos remete à condição de finitude do ser humano. Somos limitados, e nossa capacidade de previsão e de ação também apresentam os seus limites. Podemos errar em nossas escolhas e isso pode nos custar caro! Podemos também deixar de assumir as responsabilidades sobre nossas potencialidades e deixar de realizá-las. A fé não nos assegura o acerto nem o êxito (Hc 3.17-19), mas sim o perdão e a aceitação. Aceitação e perdão estão associados. Aceitar-nos e aos outros é admitir a nossa falibilidade e abrir-nos para acolher o outro e a nós mesmos tal como somos ou estamos. Somente assim poderemos nos livrar das fantasias que nos afastam da realidade e das cobranças e reivindicações amargas. Quando alcançamos essa abertura de mente e de espírito, estamos prontos para o milagre da mudança.
Para terminar, talvez não haja nada mais oportuno do que as palavras do próprio Dr. Paul Tournier: "Porque eu descobri que não é quando estamos espiritualmente ensoberbecidos, mas sim quando somos mais humanos, que mais nos aproximamos de Deus. Essa é uma verdade que Ele tem de me ensinar de novo todos os dias".





quarta-feira, outubro 21, 2009

Sobre Propósito III





MAIS UM POUCO DE PROPÓSITO!


A busca do sentido histórico e da imortalidade histórica tornaram-se os “deuses-destinos” de quase todos os homens na Terra.
Ora, assim, “propósito” equivale a “importância histórica” ou ao reconhecimento de que a pessoa se tornou “alguém” para outros “alguéns” que lhe dão suposta afirmação de significado; ou seja: propósito.
Desse modo mede-se o propósito da vida pelo significado histórico que a pessoa teve. Ou seja: a vida fica do tamanho do reconhecimento de terceiros.
A Academia Brasileira de Letras, por exemplo, assume tal realidade sem pudor algum quando declara que seus membros se tornam “imortais” mesmo antes de morrerem, pois, supostamente, passar a figurar naquele Panteão garante inesquecibilidade aos ocupantes dos “nichos” de literatura.
Nesse caso, “propósito” equivale a se tornar inesquecível!
Sendo assim, quem existe de modo “notório” tem sentido, e quem existe sem ser percebido se torna um nada, um incompetente para a História, tenha ela o tamanho que tiver em relação ao mundo da pessoa “sem propósito”.
É por tal razão que se diz que algumas figuras não morrem jamais, em razão de terem-se feito inesquecíveis pelo fato de suas realizações lhes garantirem sobrevida ao corpo físico, nem que seja de modo negativo.
Ora, nesse sentido é que Hitler foi escolhido como “a personalidade mais marcante do Século XX”, deixando Gandhi para trás, por exemplo.
É a confusão entre importância histórica e o significado existencial de cada um, aquilo que mais gera essa aflição acerca de propósito na vida!
A História só imortaliza quem não foi anônimo, mesmo que tenha sido um Hitler.
Ou seja: na História vale ganhar o mundo inteiro e perder a alma!
No Evangelho, porém, só tem significado aquele e aquilo que existe em amor, pois, sendo Deus amor, e sendo de Seu reconhecimento apenas e tão somente aquilo que foi feito em amor, por gente que existiu em amor, nada que não seja amor tem qualquer propósito; visto que para o Único com poder de atribuir sentido existencial e eterno às criaturas humanas, somente o que é produzido pelo material do amor tem durabilidade e permanência.
Se Deus é amor, como cremos, pergunto:
O que mais que não seja amor tem sentido ou carrega propósito?
E mais:
Se Deus não é amor, pergunto: que outro poder pode dar significado à existência humana?
Assim, o propósito de um ser humano é do tamanho de seu amor verdadeiro para com Deus, o próximo e a vida!
O que passar disto é angustia existencial pagã dominando a alma humana ou a alma do discípulo que perdeu a transcendência do amor de Deus!
Pense nisso!
Nele,
Caio

terça-feira, outubro 20, 2009

Redescobrindo o sentido da vida - Olavo de Carvalho


Na foto: Viktor Emil Frankl


Freud assegurava que, reduzido à privação extrema, o ser humano perderia sua casca de espiritualidade e poria à mostra sua verdadeira natureza, comportando-se como um bicho. Victor Emil Frankl, psiquiatra, judeu e austríaco como Freud, não acreditava nisso, mas não teve de inventar uma resposta ao colega: encontrou-a pronta no campo de concentração de Theresienstadt durante a II Guerra Mundial. Ali, reduzidos a condições de miséria e pavor que no conforto do seu gabinete vienense o pai da psicanálise nem teria podido imaginar, homens e mulheres habitualmente medíocres elevavam-se à dimensão de santos e heróis, mostrando-se capazes de extremos de generosidade e auto-sacrifício sem a esperança de outra recompensa senão a convicção de fazer o que era certo. A privação despia-os da máscara de egoísmo biológico de que os revestira uma moda cultural leviana, e trazia à tona a verdadeira natureza do ser humano: a capacidade de autotranscendência, o poder inesgotável de ir além do círculo de seus interesses vitais em busca de um sentido, de uma justificação moral da existência.

(...)

O que Frankl descobriu em Thesienstadt foi que além do desejo de prazer e da vontade de poder existe no homem uma força motivadora ainda mais intensa, a "vontade de sentido": a alma humana pode suportar tudo, exceto a falta de um significado para a vida. Ao contrário, dizia Frankl, "se você tem um porquê, então pode suportar todos os comos". A privação de sentido origina um tipo de neurose que Freud e Adler não haviam identificado, e que é a forma de sofrimento psíquico mais disseminada no mundo de hoje: a neurose noogênica, isto é, de causa espiritual, marcada pelo sentimento de absurdo e vacuidade.